B U R E A U O F P U B L I C S E C R E T S |
Descobertas pessoais
Intervenções críticas
Teoria versus ideologia
Evitar falsas opções e elucidar as verdadeiras
O estilo insurrecional
Cine radical
Opressão versus jogo
O escândalo de Estrasburgo
A miséria da política eleitoral
Reformas e instituições
alternativas
Correção
política, ou igualdade na alienação
Inconveniências do
moralismo e do extremismo simplista
Vantagens da audácia
Vantagens e limites da não
violência
“O indivíduo não pode saber o que ele realmente é enquanto não se realizar mediante a ação. . . . O interesse que o indivíduo encontra em um projeto é a resposta à questão sobre se deve atuar ou não e como”.
— Hegel, Fenomenologia do espírito
Mais adiante tratarei de responder a algumas outras objeções comuns. Mas enquanto os objetores permanecerem passivos, nenhum argumento do mundo os comoverá, e continuarão entonando o velho refrão: “É uma bela idéia, mas não é realista, vai contra a natureza humana, as coisas sempre foram assim”. Quem não realiza seu próprio potencial é improvável que reconheça o potencial dos outros.
Parafraseando aquela velha oração plena de sentido, necessitamos de iniciativa para resolver os problemas que podemos resolver, de paciência para suportar os que não podemos resolver, e sabedoria para discernir a diferença. Mas também necessitamos ter presente que alguns dos problemas que o indivíduo isolado não pode resolver podem ser resolvidos coletivamente. Descobrir que outros compartilham do mesmo problema é com freqüência o princípio da solução.
Alguns problemas podem, por conseguinte, ser resolvidos individualmente, mediante métodos diversos que vão desde terapias elaboradas, práticas espirituais, e até mesmo simples decisões de sentido comum para corrigir alguma falha, romper com algum hábito nocivo, provar alguma coisa nova, etc. Mas não me ocupo aqui de expedientes puramente pessoais, úteis mesmo dentro de seus limites, mas dos momentos em que as pessoas se movem "para fora" em empresas deliberadamente subversivas.
Existem mais possibilidades do que parece à simples vista. Uma vez que se rechaça a intimidação, algumas delas são muito simples. Podes começar por onde quiseres. Mas tem que fazê-lo a partir de algum lugar - Crês que poderás aprender a nadar se nunca te atirastes na água?
As vezes é preciso um pouco de ação para romper com o falatório excessivo e restabelecer uma perspectiva concreta. Não importa que seja algo transcendental; se não surge outra coisa, pode bastar alguma iniciativa arbitrária - suficiente para mover um pouco as coisas e despertar.
Outras vezes é necessário deter-se, romper a cadeia de ações e reações compulsivas. Aclarar o ambiente, criar um pequeno espaço livre da cacofonia do espetáculo. Quase todos fazem isto em alguma medida, por simples autodefesa psicológica instintiva, praticando alguma forma de meditação, comprometendo-se periodicamente em alguma atividade que serve efetivamente ao mesmo propósito (trabalhar no jardim, passear, pescar), ou deter-se para respirar um pouco em meio a sua rotina quotidiana, voltando por um momento ao “centro tranqüilo”. Sem tal espaço é difícil ter uma perspectiva sadia sobre o mundo, ou mesmo conservar o próprio juízo.
Um dos métodos mais úteis que encontrei foi escrever. O beneficio é em parte psicológico (alguns problemas perdem seu poder sobre nós ao ordenar-se de modo que podemos ve-los mais objetivamente), em parte pela questão da organização de nossos pensamentos para ver os diferentes fatores e opções mais claramente. Às vezes mantemos noções inconsistentes sem chegar a tomar consciência das contradições até que tentamos colocar essas coisas no papel.
Às vezes tenho sido criticado por exagerar na importância das coisas escritas. Reconheço, assim, que muitos assuntos podem ser tratados de modo mais direto. Inclusive as ações não verbais requerem normalmente que se pense, que se fale e que se escreva acerca delas para leva-las a cabo, comunica-las, debatê-las e corrigi-las eficazmente.
(De qualquer forma, não pretendo ocupar-me de todos os assuntos; apenas abordo alguns pontos acerca dos quais sinto que tenho algo a dizer. Se acha que esqueci de passar algo importante, porquê você mesmo não faz isso?)
Escrever te permite desenvolver idéias em teu próprio ritmo, sem se preocupar com tua habilidade oratória ou medo do público. Podes expressar uma idéia de uma vez por todas em vez de ter que repeti-la constantemente. Se é necessária a discrição, um texto pode ser lançado anonimamente. As pessoas podem lê-lo em seu próprio ritmo, parar e pensar sobre ele, voltar atrás e revisar pontos específicos, reproduzi-lo, adapta-lo, recomenda-lo a outros, etc. O discurso falado pode gerar uma reação mais rápida e precisa, mas pode também dispersar tua energia, te impedir de se concentrar e de executar tuas idéias. Aqueles que são escravos da mesma rotina que te escraviza tendem a resistir a teus esforços por escapar porque teu êxito desafiaria a passividade deles.
Às vezes o melhor que podes fazer para provocar melhor estas pessoas é simplesmente deixá-las para traz e seguir teu próprio caminho. Ao ver teu progresso, algumas delas dirão: “Ei, espere-me!”. Ou transferir o diálogo a um plano diferente. Uma carta força tanto quem a escreve como quem a recebe a desenvolver suas idéias mais claramente. As cópias nas mãos de outras pessoas envolvidas podem a avivar a discussão. Uma carta aberta pode atrair o interesse de mais gente.
Se se consegue criar uma reação em cadeia na qual cada vez mais gente lê teu texto porque vê que outros lendo e o discutem acaloradamente já não será possível para ninguém fingir que não têm consciência dos temas que estão circulando. (1)
Suponhamos, por exemplo, que criticas a um grupo por ser hierárquico, por permitir que um líder tenha poder sobre outros membros (ou seguidores ou fãs). Uma conversa privada com um dos membros pode simplesmente resultar em uma serie de reações defensivas contraditórias contra as quais é inútil argumentar. (“Não, ele não é realmente nosso líder, e se for, não é autoritário, e além disso, que direito tens tu de criticar?”) Mas uma crítica pública obriga a tirar essas contradições e põe as pessoas diante de um fogo cruzado. Enquanto um membro nega que o grupo seja hierárquico, um segundo pode admitir que é hierárquico e tentar justificar isto atribuindo ao líder uma perspicácia superior. Isto pode fazer pensar em um terceiro membro.
A princípio, molestados por teres perturbado sua pequena e cômoda tertúlia, é provável que o grupo cerre fileiras em derredor do líder e denuncie tua “negatividade” ou “arrogância elitista”. Mas se tua intervenção for suficientemente aguda pode calar fundo e ter um forte impacto. O líder tem que tomar cuidado posto que todos estão mais sensíveis a qualquer coisa que possa parecer confirmar tua crítica. Para demostrar quão injusto tu estavas, pode ser que os membros insistam em uma maior democratização. E inclusive se o grupo particular se mostra impermeável à mudança, seu exemplo pode servir como lição para um público mais amplo. Outras pessoas que não estejam comprometidas e que, sem tua crítica, haveriam cometido talvez erros similares podem ver mais facilmente a pertinência de tua crítica porque tem menos investidura emocional no grupo.
Normalmente é mais efetivo criticar instituições e ideologias que atacar aos indivíduos que se encontram simplesmente envolvidos com elas - não apenas porque a máquina é mais importante que suas partes móveis, mas porque este enfoque faz mais sentido para os indivíduos na hora de salvar a cara dissociando-se eles mesmos da máquina.
Mas por mais diplomático que sejas, quase toda crítica significativa seja ela qual for provocará provavelmente reações defensivas irracionais, que vão desde ataques pessoais até invocações de uma ou outra ideologia da moda para demonstrar a impossibilidade de qualquer consideração racional dos problemas sociais. A razão é denunciada como fria e abstrata pelos demagogos que acham mais fácil jogar com o sentimento das pessoas; a teoria é depreciada em nome da prática
Teorizar é simplesmente tratar de entender o que fazemos. Todos somos teóricos ao discutir honestamente sobre o que sucede, distinguir entre o significante e o irrelevante, penetrar as explicações falsas, reconhecer o que foi eficaz e o que não foi, considerar como algo pode ser feito melhor da próxima vez. A teoria radical é simplesmente falar ou escrever a uma grande quantidade de pessoas sobre temas mais gerais em termos mais abstratos (ou seja, mais amplamente aplicáveis). Inclusive aqueles que dizem rechaçar a teoria teorizam — simplesmente o fazem mais inconsciente e caprichosamente, e portanto de modo mais impreciso.
A teoria sem casos particulares é vazia, mas os casos particulares sem a teoria são cegos. A prática prova a teoria, mas a teoria também inspira práticas novas.
A teoria radical não tem nada que respeitar nem nada que perder. Critica a si mesma como tudo o mais. Não é uma doutrina que deva ser aceita pela fé, mas uma tentativa generalizada que as pessoas devem provar e fazer constantes correções por si mesmas, uma simplificação prática indispensável para tratar com as complexidades da realidade.
Mas com o cuidado de que não seja uma simplificação excessiva. Toda teoria pode transformar-se em ideologia, chegar a ser rígida como um dogma, ser desviada para fins hierárquicos. Uma ideologia sofisticada pode ser relativamente segura em certos aspectos; o que a diferencia da teoria é que carece de uma relação dinâmica com a prática. Na teoria tu tens idéias; na ideologia as idéias tem a ti. “Busca a simplicidade, e desconfia dela”.
Evitar falsas opções e elucidar as verdadeiras
Temos de encarar o fato de que não há truques seguros, de que nenhuma tática radical é invariavelmente apropriada. Algo que é coletivamente possível durante uma revolta pode não ser uma opção sensata para um indivíduo isolado. Em certas situações urgentes pode ser necessário incitar as pessoas a levar a cabo alguma ação específica; mas na maioria dos casos o que mais convêm é simplesmente elucidar os fatores relevantes que as pessoas devem levar em conta ao tomar suas próprias decisões (Se me atrevo a dar aqui ocasionalmente alguns conselhos diretos, é por conveniência de expressão. “Fazer isso ou aquilo” deve ser entendido como “Em algumas circunstancias fazer tal coisa pode ser uma boa idéia”).
Uma análise social não necessita ser grande e detalhada. Simplesmente “divida em um ou dois pontos” (indicando as tendências contraditórias dentro de um determinado fenômeno, grupo, ou ideologia) ou “agrupe os dois dentro de um” (revelar um aspecto comum entre duas entidades aparentemente distintas) pode ser útil, especialmente se se comunica aos diretamente envolvidos. O acesso a uma informação é mais importante que levantar muitos temas; o que faz falta é abrir o caminho entre o excesso para revelar o essencial. Fazendo isso, outras pessoas, inclusive as bem informadas, serão estimuladas a efetuar investigações mais completas, caso necessário.
Quando nos defrontamos com determinado tópico, a primeira coisa a fazer é determinar se com efeito é um simples tópico. É impossível levar uma discussão significante sobre “marxismo”, “violência”, ou “tecnologia” sem distinguir os diversos sentidos que se incluem sob tais etiquetas.
Por outro lado, também pode ser útil tomar um tema amplamente abstrato e mostrar suas tendências predominantes, se bem que tais tipos puros não existam realmente. O panfleto Sobre a miséria no meio estudantil... dos situacionistas, por exemplo, enumera mordazmente toda sorte de estupidez e pretensões do “estudante”. Obviamente nem todo estudante é culpado destes defeitos, mas o estereotipo serve como um enfoque a partir do qual organizar uma crítica sistemática das tendências gerais. Sublinhando as qualidades que a maioria dos estudantes tem em comum, o panfleto também desafia àqueles que afirmam ser exceções para que provem. O mesmo se aplica à crítica do “pro-situ” em A verdadeira cisão na Internacional de Debord e Sanguinetti — um desafiante desprezo aos seguidores, talvez único na historia, dos movimentos radicais.
“Peça a todos uma opinião acerca de cada detalhe para que possas visualizar a totalidade” (Vaneigem). Muitos temas estão tão carregados emocionalmente que qualquer reação a eles pode levar ao emaranhado das falsas opções. O fato de que dois lados estejam em conflito, por exemplo, não significa que devas apoiar alguma das partes. Se não podes fazer nada acerca de um problema em particular, é melhor confessar claramente este fato e passar para outro assunto que tenha possibilidades práticas presentes. (2)
Se tomas partido escolhendo um mal menor, admita isso; não aumente a confusão purificando tua escolha ou demonizando ou inimigo. Se tem que fazer algo, analise sob todos os aspectos: seja advogado do diabo e neutralize o delírio polêmico compulsivo examinando com calma os pontos fortes da posição oposta e os pontos débeis da tua. “Um erro muito comum: ter a coragem de defender as próprias posições; a questão é ter a coragem de atacar as próprias convicções!” (Nietzsche).
Combina a imodéstia com a audácia. Recorda que se consegues realizar algo é sobre a base dos esforços de muitos outros, muitos dos quais tem enfrentado horrores tais que fariam a ti e a mim desabar em submissão. Mas não esqueças que o que dizes pode produzir algum efeito: dentro de um mundo de espectadores pacificados até mesmo a mais pequena expressão autônoma sobressai.
Posto que já não há nenhum obstáculo material para inaugurar uma sociedade sem classes, o problema se reduz essencialmente a uma questão de consciência: o único obstáculo real é que as pessoas ignoram seu próprio poder coletivo. (A repressão física é efetiva contra as minorias radicais apenas na medida em que o acondicionamento social mantêm dócil o resto da população). Por conseguinte um elemento amplo da prática radical é o elemento negativo: atacar as formas diversas da falsa consciência que impedem as pessoas de dar-se conta de suas potencialidades positivas.
Tanto Marx como os situacionistas tem sido com freqüência denunciados de modo ignorante por essa negatividade, porque eles se concentraram principalmente no esclarecimento crítico evitando promover qualquer ideologia positiva que as pessoas pudessem aderir passivamente. Por Marx ter destacado a forma como o capitalismo reduz nossas vidas a um precipício econômico, os apologistas “idealistas” deste estado de coisas lhe acusam de “reduzir a vida a temas econômicos” — como se a grande importância do trabalho de Marx não fosse ajudar-nos a superar nossa escravidão econômica para que nossos potenciais criativos pudessem florescer. “Apelar para que as pessoas abandonem suas ilusões sobre sua condição é apelar para que abandonem uma condição que requer ilusões... A crítica arranca as flores imaginarias da prisão não para que o homem continue suportando essa prisão sem fantasia ou consolação, mas para demolir a prisão e recolher a flor vivente (Introdução a uma crítica da filosofia do direito de Hegel).
Expressar acertadamente um tema chave com freqüência tem um efeito surpreendentemente poderoso. Jogar luz sobre as coisas faz com que as pessoas abandonem suas evasivas e tomem posição. Como o destro açougueiro na fábula taoísta que nunca necessitava afiar a faca porque sempre cortava pelas juntas, a polarização radical mais efetiva não vem de protestos estridentes, mas de simplesmente revelar as divisões que existem, elucidar as diferentes tendências, contradições, opções. Muito do impacto dos situacionistas procede do fato de que articularam coisas que a maioria das pessoas já havia experimentado, mas não eram capazes de expressa-las ou temiam fazê-lo até que o gelo fosse rompido. (“Nossas idéias estão na mente de todos”)
Se alguns textos situacionistas parecem sem embargo difíceis ao principio, é porque sua estrutura dialética vai contra a fibra de nosso condicionamento. Quando este condicionamento se rompe não parecem tão obscuros (foram a origem de alguns dos grafites mais populares de maio de 68). Muitos espectadores acadêmicos ficaram confusos tratando de resolver sem êxito as várias descrições “contraditórias” do espetáculo em A sociedade do espetáculo deixando escapar definições simplistas como, “cientificamente consistente”; mas qualquer um que esteja comprometido com a contestação desta sociedade comprovará que um exame elaborado desde diferentes ângulos, como fez Debord, é esclarecedor e útil, e fará tudo que estiver ao seu alcance para não desperdiçar uma única palavra em vulgaridades acadêmicas ou em expressões escandalosas e inúteis.
O método dialético que vai de Hegel e Marx aos situacionistas não é uma fórmula mágica para produzir uma serie de predições corretas, é uma ferramenta para apreender os processos dinâmicos da mudança social. Nos recorda que os conceitos sociais não são eternos; e que contem suas próprias contradições, interagindo e transformando-se entre si, inclusive em seus opostos; que o que é verdadeiro e progressista em um contexto pode chegar a ser falso e regressivo em outro.(3)
Um texto dialético pode requerer um estudo cuidadoso, uma vez que cada nova leitura é portadora de novos descobrimentos. E mesmo que apenas influa diretamente em pouca gente, tende a fazê-lo tão profundamente que muitos deles acabam influindo em outros da mesma forma, levando a uma reação qualitativa em cadeia. A linguagem não dialética da propaganda esquerdista é mais fácil de entender, mas normalmente seu efeito é superficial e efêmero; ao não delinear desafios, logo acaba aborrecendo os espectadores confusos sobre o que foi exposto.
Como descreve Debord em sua última película, aqueles que acham que o que dizem é demasiado difícil fariam melhor culpar sua própria ignorância e passividade, culpar às escolas e à sociedade que lhes fez deste modo, do que queixar-se de sua própria obscuridade. Quem não tem suficiente iniciativa para reler textos cruciais, fazer uma pequena indagação, ou uma pequena experimentação por si mesmo é improvável que leve algo a cabo sem ser mimado pelos demais.
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Debord é praticamente a única pessoa que faz um uso verdadeiramente dialético e antiespetacular do cinema. Embora muitos realizadores ditos radicais aplaudam o “distanciamento” brechtiano, ou seja, cutucar os espectadores para que pensem e atuem por si próprios, em vez de absorvê-los em uma identificação passiva com o herói ou a trama — a maioria das películas radicais se dirige à audiência como se ela fosse composta por um bando de imbecis. O parvo protagonista gradualmente “descobre a opressão” e se “radicaliza” ao ponto de se alistar como um fervoroso partidário do "progressismo" político ou como um militante leal a algum grupo esquerdista burocrático. O mais distante que conseguem chegar se limita a algumas trucagens cinematográficas que permitem ao espectador pensar: “Ah, um toque brechtiano! Como este realizador é inteligente! Sou muito esperto percebendo tais sutilezas!” A realidade, é que a mensagem radical é normalmente tão banal quanto óbvia para qualquer um que fosse ver tal película pela primeira vez; mas o espectador tem a gratificante impressão de que outras pessoas podem superar seu nível de consciência vendo tal filme.
Se o espectador sente alguma inquietude acerca da qualidade do que está consumindo, logo é acalmado pelos críticos, cuja principal função é descobrir profundos sentidos radicais em praticamente qualquer filme. Como no conto da roupa nova do imperador, é improvável alguém admitir não ter consciência destes supostos sentidos tanto que busca saber deles temendo ser taxado de menos sofisticado que o resto da platéia.
Certos filmes podem ajudar a expor alguma condição deplorável ou comunicar alguma noção da sensação ante uma situação radical. Mas não é muito significativo apresentar imagens de uma luta se não se critica nem as imagens nem a luta. Os espectadores se queixam às vezes quando determinada película retrata inadequadamente alguma categoria social (p. e. as mulheres). Isso pode ser certo na medida em que a película reproduz certos estereótipos falsos; mas a alternativa normalmente implícita — de que o realizador “deveria apresentar imagens de mulheres lutando contra a opressão “ — é na maioria dos casos igualmente falsa. As mulheres (como os homens ou qualquer outro grupo oprimido) são de fato normalmente passivos e submissos — este é precisamente o problema que temos que encarar. Atender à autosatisfação das pessoas apresentando espetáculos de heroísmo radical triunfante apenas reforça esta escravidão.
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Confiar que condições opressivas radicalizem as pessoas é desaconselhável; piorá-las intencionalmente para acelerar este processo é inaceitável. A repressão em cima de alguns projetos radicais pode incidentalmente trazer à tona o absurdo da ordem dominante; mas tais movimentos devem ser dignos de consideração por seu próprio valor — perdem sua credibilidade se são meros pretextos desenhados para provocar a repressão. Inclusive nos meios mais “privilegiados” quase sempre há problemas mais que suficientes, é desnecessário agregar outros. O importante é revelar o contraste entre as presentes condições e as presentes possibilidades, e transmitir às pessoas um maior apego e um maior desejo pela vida real.
Os esquerdistas com freqüência dão a entender que é necessário muita simplificação, exagero e repetição para neutralizar toda a propaganda dominante. Isto é como dizer que um boxeador que ficou grogue por um gancho de direita voltará à lucidez com um gancho de esquerda.
A consciência das pessoas não “aumenta” quando a sepultamos sob uma avalanche de historias de horror, nem sob uma avalanche de informações. A informação que não é criticamente assimilada e utilizada logo acaba esquecida. Tanto a saúde mental como a física requerem um equilíbrio entre a absorção e a utilização das informações recebidas. Às vezes pode ser necessário colocar pessoas complacentes diante de alguma atrocidade por eles desconhecida, mas mesmo quando as machucamos interiormente até provocar náuseas, normalmente não se consegue outra coisa senão provocar uma fuga em direção a espetáculos menos chatos e deprimentes.
Um dos principais motivos que nos impede compreender nossa situação é o espetáculo de aparente felicidade de outras pessoas, que nos faz ver nossa própria infelicidade como um um vergonhoso sinal de fracasso. Mas um espetáculo onipresente de miséria também nos impede de ver nossos potenciais positivos. A constante difusão de idéias delirantes e de atrocidades nausebundas nos paralisa, nos converte em cínicos paranóicos e compulsivos.
A estridente propaganda esquerdista, ao fixar sua atenção sobre o insidioso e sobre o odioso dos “opressores”, alimenta com freqüência o delírio, apelando para o lado mais mórbido e mesquinho do povo. Se nos limitamos a ruminar males, se permitimos que a enfermidade e a fealdade desta sociedade perverta inclusive nossa rebelião contra ela, esquecemos por que estamos lutando e terminamos perdendo a própria capacidade de amar, de criar, de desfrutar.
A melhor “arte radical” se manifesta quando é ao mesmo tempo positiva e crítica. Quando ataca a alienação da vida moderna, ela nos adverte simultaneamente das potencialidades poéticas ocultas dentro dela. Mais que reforçar nossa tendência em evocar a auto compaixão, estimula nossa resistência, nos permite rir tanto de nossos próprios problemas quanto da estupidez das forças da “ordem”. Um bom exemplo são algumas das velhas canções e tiradas cômicas da IWW [Industrial Workers of the World, organização anarcosindicalista que ainda existe, mas que teve seu momento mais importante entre 1910-1930 (N. do T.)], se bem que a ideologia da IWW atualmente esteja um tanto quanto rançosa. Outro exemplo são as irônicas canções agridoces de Brecht e de Weill. A hilaridade de O bom soldado Svejk é provavelmente é um antídoto mais efetivo contra a guerra do que o ultraje moral do típico folheto pacifista.
Nada atinge tanto a autoridade do que conduzi-la ao ridículo. O argumento mais efetivo contra um regime repressivo não é afirmar sua maldade, mas sua estupidez. Um belo exemplo disso são os protagonistas da novela de Albert Cossery, A violência e a burla, que vivem sob uma ditadura no Oriente Médio. Eles cobrem as paredes da capital com um pôster de aspecto oficial que glorifica o ditador de um modo tão ridículo que o obriga a se demitir por vergonha. Embora os zombadores de Cosséry sejam apolíticos e seu êxito demasiado bonito para ser infalível, muitos tem utilizado algumas parodias similares com fins mais radicais (p.e. o golpe de Li I-Che mencionado em Public Secrets página 304, “Um grupo radical em Hong-Kong”). Nas manifestações dos anos 70 na Itália os Índios Metropolitanos (inspirados talvez no primeiro capítulo de Sylvie and Bruno de Lewis Carroll: “Menos pão! Mais impostos!”) portavam cartazes e cantavam slogans como “Poder os Chefes!” e “Mais trabalho! Menos salário!” Qualquer um reconhecia a ironia, mas era mais difícil rechaçá-los com os habituais qualificativos.
O humor é um antídoto saudável contra todo tipo de ortodoxia, tanto da esquerda quanto da direita. É altamente contagioso e nos incita a não levar as coisas demasiadamente a serio. Mas pode facilmente vir a ser uma mera válvula de escape, canalizando a insatisfação para um eloqüente cinismo passivo. A sociedade do espetáculo aproveita as ações delirantes contra seus mais delirantes aspectos. Os satíricos tem freqüentemente uma relação de dependência de amor e de ódio no que diz respeito a seus objetivos; a paródia chega a não distinguir-se daquilo que parodia, dando a impressão de que tudo é igualmente estranho, insignificante e desesperante.
Em uma sociedade baseada na confusão e sustentada artificialmente, a primeira tarefa não é agregar mais confusão e artificialismo. As irrupções caóticas não geram habitualmente outra coisa senão irritação e pânico, resultando em que as pessoas apóiem qualquer medida que o governo tome para restaurar a ordem. Uma intervenção radical pode parecer a principio estranha e incompreensível; mas se for levada a cabo com suficiente lucidez, as pessoas prontamente a entenderão perfeitamente.
Imagine que estás na Universidade de Estrasburgo no inicio do ano letivo em 1966-67, entre estudantes, professorado e distintos convidados que entram no auditório para ouvir o discurso inaugural do presidente de Gaulle. Encontras um pequeno panfleto colocado em cada assento. Um programa? Não. Algo sobre “a miséria da vida estudantil”. Abres o folheto ociosamente e começas a ler: “Podemos afirmar sem grande risco de nos equivocarmos, que depois da policia e do sacerdote, o estudante é na França o ser mais universalmente depreciado...”. Olhas ao derredor e vês que todos os demais também o estão lendo, com reações que vão desde a perplexidade e regozijo até reações de choque e horror. Quem é o responsável por isso? O título da página revela que foi publicado pela União dos Estudantes de Estrasburgo, mas se refere também à “Internacional Situacionista”, qualquer que seja ela...
O que torna o escândalo de Estrasburgo diferente de outras gozações estudantis, ou das cabriolas confusas e contundentes de grupos como os yippies, foi sua forma escandalosa que trazia consigo um conteúdo igualmente escandaloso. No momento em que os estudantes se proclamaram como o setor mais radical da sociedade, este texto foi a única coisa que pôs as coisas em seu lugar. Mas as misérias particulares dos estudantes apenas estavam ali por serem o ponto de partida; textos igualmente duros podiam e deviam ser escritos sobre a miséria de todos os demais segmentos da sociedade (preferivelmente daqueles que a conhecem a partir de dentro). Algumas tentativas haviam sido efetuadas, de fato, mas nenhuma se aproximou tanto da lucidez e da coerência como esse panfleto situacionista, tão conciso quanto compreensivo, tão provocativo quanto exato, pela sua abordagem metódica de uma situação específica através de ramificações cada vez mais gerais, com o capítulo final apresentando o resumo mais conciso que existe do moderno projeto revolucionário. (Ver Sobre a miséria da vida estudantil e o artigo “Nossos fins e nossos métodos no escândalo de Estrasburgo em I.S. # 11.)
Os situacionistas nunca pretenderam provocar sozinhos a revolução de maio de 1968 — como foi dito, eles predisseram o conteúdo da revolta, mas não o desfecho nem o lugar. Mas sem o escândalo de Estrasburgo e a agitação subseqüente do grupo Enragés influenciado pela IS (da qual o bem conhecido Movimento 22 de março foi apenas uma imitação tardia e confusa) a revolta nunca se sucederia. Não havia crises econômicas ou governamentais na França, nenhuma guerra ou antagonismo racial desestabilizava o pais, nem nenhuma outra questão particular que pudesse anunciar uma revolta como a que ocorreu. Na Itália e na Inglaterra estavam em marcha lutas operárias mais radicais, na Alemanha lutas estudantis mais militantes. No Japão, movimentos contraculturais mais amplos, como também nos EUA e nos Países Baixos. Mas apenas na França havia uma perspectiva que vinculava todos ao mesmo tempo.
Intervenções cuidadosamente calculadas como o escândalo de Estrasburgo devem ser cuidadosamente diferenciadas não apenas de desordens confusionistas, mas também das revelações meramente espetaculares. Na medida em que a crítica social se limita a contestar este ou aquele detalhe, a relação espetáculo-espectador se reconstitui continuamente: se os críticos conseguem desacreditar os líderes políticos existentes, acabam muitas vezes se convertendo em novas estrelas (Ralph Nader, Noam Chomsky, etc.) que alimentam seus espectadores mais conscientes com um fluxo continuo de informações escandalosas a respeito das quais raramente fazem qualquer coisa. As revelações mais moderadas conseguem uma audiência que apóia esta ou aquela facção do poder intragovernamental; as mais sensacionalistas alimentam a curiosidade mórbida do povo, incitando-o a consumir mais artigos, telejornais e docudramas, fora os intermináveis debates acerca das diversas teorias da conspiração. É evidente que a maior parte destas teorias não são senão reflexos delirantes da falta de sentido histórico crítico produzida pelo espetáculo moderno, e tentativas desesperadas de encontrar algum sentido coerente em uma sociedade cada vez mais incoerente e absurda. Em qualquer caso, na medida em que as coisas permanecem no terreno do espetacular quase não importa se algumas destas teorias estejam certas: aqueles que passam o dia na expectativa do que irá acontecer algo amanhã nunca afetarão o futuro.
Certas revelações são mais interessantes não só por levantar temas significativos ao debate público, mas também por atrair muita gente ao debate. Um exemplo simpático foi o escândalo de 1963 de “Spies for Peace” na Inglaterra, onde alguns desconhecidos anunciaram a localização de um refugio atômico secreto reservado aos membros do governo. Quanto mais veemente a ameaça do governo em perseguir a qualquer um que reproduzisse este “segredo de estado” que já não era segredo para ninguém, mais alegre e criativa era a difusão por milhares de grupos e de indivíduos (que começaram também a descobrir e a invadir muitos outros refúgios secretos). Tanto a estupidez do governo como a loucura do espetáculo da guerra nuclear ficaram evidentes para qualquer pessoa, a espontânea reação em cadeia humana aportou uma mostra de um potencial social mui diferente.
* * *
A miséria da política eleitoral
“Nenhum governo liberal desde 1814 subiu ao poder a não ser pela violência. Cânovas, suficientemente inteligente para ver a inconveniência e o perigo que isto representava, determinou que os governos conservadores deveriam ser sucedidos regularmente por governos liberais. Diante de uma crise econômica ou de uma greve, o plano seria demitir e deixar que os liberais resolvessem o problema. Isto explica por que a maior parte da legislação repressiva aprovada durante o resto do século foi aprovada por eles”.
—Gerald Brenan, The Spanish Labyrinth
O melhor argumento a favor da política eleitoral radical foi elaborado por Eugene Debs, o líder socialista americano que em 1920 obteve cerca de um milhão de votos para a presidência enquanto permanecia na prisão por opor-se à I Guerra Mundial: “Se as pessoas não tem informações suficientes para saber em quem votar, não saberão contra quem disparar”. Por outro lado, os trabalhadores durante a revolução alemã de 1918-19 não sabiam contra quem disparar exatamente devido à presença dos líderes “socialistas” no governo trabalhando constantemente para reprimir à revolução.
A grosso modo podemos distinguir cinco graus de "governo":
(1) liberdade irrestrita
(2) democracia direta
(3) democracia delegada
(4) democracia representativa
(5) ditadura de uma minoria
A presente sociedade oscila entre os pontos (4) e (5), isto é, entre governo minoritário declarado e governo minoritário disfarçado, ambos camuflados por uma fachada simbólica de democracia. Uma sociedade liberada eliminaria os pontos (4) e (5) e progressivamente reduziria a necessidade dos pontos (2) e (3). . .
Nas democracias representativas as pessoas abdicam de seu poder ao eleger governantes. A plataforma política dos candidatos são limitadas a algumas vagas generalidades. Uma vez eleitos, há pouco controle sobre suas reais decisões em centenas de assuntos -- apesar da possibilidade de redirecionamento do voto das pessoas, alguns anos depois, para outros políticos rivais igualmente incontroláveis. Em suas campanhas, os representantes dependem das contribuições e dos subornos dos ricos; são subordinados aos donos dos meios de comunicação de massa que decidem o que vai e o que não vai ser divulgado pela mídia; e eles são quase tão ignorantes e impotentes quanto o público em geral, dando muita importância aos assuntos que são pautados pelos burocratas não eleitos e pelas agencias secretas independentes. Eventualmente, ditadores declarados podem ser depostos, mas os verdadeiros governantes nos regimes "democráticos", aquela minúscula minoria que virtualmente possui e controla tudo, nunca é eleita nem interna nem externamente. A maioria das pessoas nem mesmo sabe quem eles são . . . .
O ato de votar, por si só, de uma forma ou de outra, é destituído de grande significância (aqueles que fazem um grande alvoroço recusando-se a votar apenas revelam seu próprio fetiche). O problema do voto é que ele tende a fazer com que pessoas deixem a ação a cargo de outras pessoas, tornando remotas as possibilidades mais significantes. No final das contas, as pessoas que tomam alguma iniciativa criativa (pense nos primeiros protestos pelos direitos civis) podem alcançar um resultado mais efetivo do que colocar sua energia na eleição de políticos menos ruins. Na melhor das hipóteses, os legisladores raramente fazem mais do que aquilo que foram forçados a fazer pela pressão dos movimentos populares. Um regime conservador sob pressão de movimentos radicais independentes freqüentemente concede mais que um regime liberal que sabe que pode contar com o apoio radical. Se as pessoas invariavelmente se reúnem para obter o menos ruim, tudo o que qualquer governante tem que fazer em qualquer situação que ameace seu poder é eliminar qualquer ameaça de um mal maior.
Até mesmo no caso raro quando um político "radical" tem uma chance real de ganhar uma eleição, todos os tediosos esforços de campanha de milhares de pessoas podem repentinamente virar em nada diante de algum escândalo trivial descoberto em sua vida pessoal, ou porque ele inadvertidamente disse algo inteligente. Se consegue evitar estas armadilhas, ele tende a evitar assuntos controversos temendo desagradar os eleitores indecisos. Se finalmente acaba sendo eleito, ele quase nunca implementa as reformas que prometeu, a não ser, talvez, depois de anos de disputas e embates com seus novos colegas; que lhe dá uma boa desculpa para sua principal prioridade: fazer os acordos necessários para que se mantenha indefinidamente no poder. Na lida com os ricos e poderosos, ele desenvolve novos interesses e gostos pelos quais ele se justifica dizendo que merece essas coisas para se recuperar dos anos que dedicou trabalhando pela causa. Pior de tudo, se ele eventualmente consegue passar algumas medidas "progressivas", este excepcional e normalmente trivial sucesso é colocado como uma prova de que as políticas eleitorais são dignas de confiança, atraindo muito mais pessoas que irão desperdiçar suas energias nas futuras campanhas deste tipo.
Uma das pichações de maio de 1968 ilustra bem esse aspecto, "submeter-se a um chefe é doloroso; escolher um chefe é estúpido!"
Os referendos sobre temas específicos são menos susceptíveis à precariedade dos personalismos; mas os resultados não são com freqüência melhores porque os temas tendem a ser colocados de modo simplista, e qualquer projeto de lei que ameace os interesses dos poderosos normalmente acaba derrotado pela influencia do dinheiro e dos meios de comunicação.
Às vezes as eleições locais oferecem às pessoas uma oportunidade mais realista de influenciar as políticas e manter sob vigilância os candidatos eleitos. Mas nem mesmo as comunidades mais conscientes estão imunes à deterioração do resto do mundo. Se uma cidade consegue preservar características ambientais ou culturais desejáveis, estas mesmas vantagens a situam sob uma crescente pressão econômica. O fato de se dar preferencia aos valores humanos em detrimento aos valores de propriedade causa no final das contas enormes incrementos aos últimos (muita gente vai querer inverter essa situação ou mudar-se dali). Cedo ou tarde o incremento dos valores de propriedade se sobrepõe aos valores humanos: as políticas locais acabam anuladas por escalões superiores ou pelos governos nacionais ou regionais, chega muito dinheiro de fora para influir nas eleições municipais, os políticos municipais são subornados, os bairros residenciais são demolidos para dar lugar a arranha-céus e autopistas, a rentabilidade sobe vertiginosamente, as classes mais pobres são expulsas (inclusive os diversos grupos étnicos e artistas boêmios que animavam e compunham o aspecto original da cidade), e tudo o que resta da antiga comunidade são alguns lugares separados de “interesse histórico” para o consumo dos turistas.
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Reformas e instituições alternativas
Não obstante, “atuar localmente” pode ser um bom ponto de partida. Quem sente que a situação global é desesperadora ou incompreensível pode buscar sem embargo uma oportunidade de afetar algum assunto local específico. Associações de moradores, cooperativas, centros de informação, grupos de estudo, escolas alternativas, clínicas gratuitas de saúde, teatros comunais, periódicos de bairro, emissoras de radio e televisão de acesso público e muitos outros tipos de instituições alternativas são valiosas em si mesmas, e se são suficientemente participativas podem conduzir a movimentos mais amplos. Mesmo que não durem muito, aportam um terreno temporal da experimentação radical.
Mas sempre dentro de alguns limites. O capitalismo foi capaz de desenvolver-se gradualmente dentro da sociedade feudal, no momento em que a revolução capitalista se desfez dos últimos vestígios do feudalismo, a maioria dos mecanismos da nova ordem burguesa estavam já firmemente assentados. Uma revolução anticapitalista, pelo contrario, não pode realmente construir sua nova sociedade “sobre a armação da velha”. O capitalismo é muito mais flexível e onipenetrante do que era feudalismo, e tende a cooptar qualquer organização opositora.
Os teóricos radicais do século XIX podiam todavia ver suficientes resíduos sobreviventes das formas comunais tradicionais para supor que, uma vez consumada a eliminação da estrutura exploradora, poderiam reviver e ampliar-se para formar os alicerces de uma nova sociedade. Mas a penetração global do capitalismo espetacular no presente século destruíu quase todas as formas de controle popular e de interação humana direta. Inclusive os esforços mais modernos da contracultura dos anos sessenta foram há muito integrados pelo sistema. As cooperativas, os grêmios, as granjas de alimentos orgânicos e outras empresas marginais podem produzir bens de melhor qualidade sob as melhores condições laborais, mas esses benefícios todavia tem que funcionar como mercadorias no mercado. As poucas empresas afortunadas tendem a desenvolver-se no comercio ordinário, nos quais os membros fundadores assumem gradualmente um status de proprietários ou de diretores diante dos novos trabalhadores, envolvendo-se com todo tipo de assuntos burocráticos e comerciais rotineiros que nada tem que ver com “preparar o terreno para uma nova sociedade”.
Quanto mais dura uma instituição alternativa, mais ela tende a perder seu caráter voluntário, experimental, desinteressado. Seus assalariados permanentes desenvolvem um interesse pessoal na manutenção do status quo e evitam questões controversas temendo ofender seus partidários ou perder seus fundos de governo ou das fundações. As instituições alternativas também tendem a exigir demasiadamente o já limitado tempo livre das pessoas, dispersando, subtraindo energia e imaginação no confronto de temas mais gerais. Depois de um breve período a participação acaba esquecida e abandonada, deixando o trabalho aos tipos serviçais ou aos esquerdistas que tentam dar um bom exemplo ideológico. Pode soar bonito ouvir falar de associações de moradores, etc., mas a menos que suceda uma emergência local pode ser fastidioso agüentar reuniões intermináveis para escutar as reclamações de teus vizinhos, ou participar de assuntos que realmente não te interessam.
Em nome do realismo, os reformistas se limitam a perseguir objetivos “factíveis”, mas mesmo quando conseguem algo, ele é normalmente neutralizado por algum desenvolvimento em outro nível. Isto não significa que as reformas sejam irrelevantes, são simplesmente insuficientes. Temos que continuar resistindo os males particulares, mas temos também que reconhecer que enquanto não dermos um fim ao próprio sistema ele continuará gerando outros novos problemas. Supor que uma serie de reformas resultarão finalmente em uma mudança qualitativa é como pensar que podemos chegar a atravessar um abismo de dez metros com uma serie de pulinhos.
Geralmente é assumido que como a revolução implica em uma mudança bem maior que reformas, deve ser mais difícil leva-la a cabo. A grosso modo, pode ser na realidade mais fácil, porque de um golpe elimina muitas pequenas complicações e provoca um entusiasmo muito maior. Em certa medida chega a ser mais prático começar do zero do que recuperar uma estrutura apodrecida.
Entretanto, até que uma situação revolucionaria nos capacite para sermos verdadeiramente construtivos, o melhor que podemos fazer é ser criativamente negativos — nos concentrarmos no esclarecimento crítico, deixando que as pessoas persigam qualquer objetivo possível que possa interessar-lhes, mas sem a ilusão de que uma sociedade nova se “constrói” mediante a gradual acumulação de tais projetos.
Os projetos puramente negativos (p.e. abolição das leis contra o uso de drogas, sexo consensual e outros crimes sem vítimas) tem a vantagem da simplicidade: beneficiam quase a todos (exceto a esta dupla simbiótica, o crime organizado e a industria de controle do crime) e requerem pouco trabalho, se é que tem algum, para serem exitosos. Mas por outro lado, não aportam uma grande oportunidade de participação criativa.
Os melhores projetos são aqueles que são valiosos por si mesmos na medida em que contêm um desafio implícito a algum aspecto fundamental do sistema; projetos que permitem às pessoas participar em temas atraentes de acordo com seu grau de interesse, enquanto tendem a abrir caminho a possibilidades mais radicais.
Menos interessantes, se bem que úteis, são as demandas por melhores condições ou direitos mais igualitários. Embora tais projetos não sejam em si mesmos mui participativos podem eliminar impedimentos à participação.
As menos desejáveis são as meras lutas de soma zero, onde a ganância de um grupo é a perda de outro.
Em última análise a questão não é dizer às pessoas o que elas devem fazer, mas fazê-las ter consciência daquilo que estão fazendo. Se promovem algum assunto para recrutar gente, é apropriado revelar seus motivos manipulativos. Se crêem que estão contribuindo para um cambio radical, pode ser útil mostrar-lhes como sua atividade está realmente reforçando o sistema de alguma forma. Mas se estão realmente interessados no projeto pelo projeto, que continuem!
Mesmo se estamos em desacordo com suas prioridades (coleta de fundos para a ópera, por exemplo, enquanto a rua está cheia de gente sem teto) deveríamos nos guardar de qualquer estratégia que meramente invoque a culpabilidade das pessoas, não só por tais invocações exercem geralmente um efeito negativo mas porque tal moralismo reprime saudáveis aspirações positivas. Abster-se de enfrentar assuntos de “qualidade de vida” porque o sistema continua estabelecendo questões de sobrevivência é submeter-se a uma chantagem que já não tem nenhuma justificação. “O feijão e o sonho” já não são mutuamente excludentes.(4)
Os projetos de “qualidade de vida” são com freqüência de fato mais inspiradores que demandas políticas e econômicas rotineiras porque despertam nas pessoas perspectivas mais ricas. Os livros de Paul Goodman são plenos de exemplos imaginativos e muito divertidos. Mesmo que suas propostas sejam “reformistas”, o são de uma forma tão viva e provocativa que aportam um estimulante contraste com a servil postura defensiva da maioria dos reformistas de hoje, que se limitam a reagir à agenda dos reacionários dizendo: “Estamos de acordo no que é essencial: criar emprego, lutar contra o crime, defender nossa pátria com energia; mas os métodos moderados conseguem isto melhor que as propostas extremistas dos conservadores”.
Se tudo segue igual, faz mais sentido concentrar nossa energia em temas que não recebem a atenção pública; é melhor trabalhar com projetos que podem ser executados limpa e diretamente por seus próprios interessados do que através de agencias governamentais. Mesmo que tais compromissos não pareçam demasiado sérios, criam um mal precedente. A dependência diante do estado quase sempre se volta contra algo (comissões designadas para suprimir a corrupção burocrática sempre acaba se desdobrando em novas burocracias corruptas; leis desenhadas para desbaratar grupos reacionários armados terminam sendo utilizadas principalmente para perseguir grupos radicais desarmados).
O sistema prefere matar dois pássaros com um único tiro do que aceitar seus oponentes oferecer “soluções construtivas” a suas próprias crises. De fato necessita uma certa oposição para dar conta dos problemas, forçar a racionalização, exercitar seus instrumentos de controle e encontrar desculpas para impor novas formas de controle. Medidas de emergência são imperceptivelmente convertidas em procedimentos normais, de igual forma regulamentações que normalmente poderiam ser contestadas são introduzidas em situações de pânico. A lenta e constante destruição da personalidade humana por todas as instituições da sociedade alienada, da escola à fábrica, da propaganda ao urbanismo, aparecem como normais quando o espetáculo enfoca obsessivamente crimes individuais sensacionais, manipulando pessoas até a histeria em favor da ordem pública.
Correção política, ou igualdade na alienação
A alienação, acima de tudo, prospera quando pode desviar a contestação social para disputas por posições privilegiadas dentro dela.
Esta é uma questão particularmente espinhosa. Toda desigualdade social necessita ser desafiada, não só por ser injusta, mas porque enquanto permanecer pode ser utilizada para dividir as pessoas. Lograr igualdade na escravidão salarial ou oportunidades iguais para chegar a ser burocrata ou capitalista apenas constitui uma vitoria do capitalismo burocrático.
É natural e necessário que as pessoas defendam seus próprios interesses; mas se o fazem identificando-se demasiado exclusivamente com algum grupo social particular tendem a perder de vista a situação mais geral. Na medida em que categorias cada vez mais fragmentadas pelejam por migalhas destinadas a cada uma, caem em jogos mesquinhos de culpabilização mutua e a noção de abolir a estrutura hierárquica é completamente esquecida. Pessoas que sempre estão dispostas a denunciar diante da mais leve insinuação de estereótipos acabam entusiasmando-se a ponto de agrupar quase todo mundo entre os “opressores”, e então se perguntam porque encontram reações tão fortes por toda parte, inclusive por gente consciente de que tem pouco poder real sobre suas próprias vidas, e muito menos sobre a dos demais.
Fora os demagogos reacionários (alegremente adotados pelos “progressistas” como alvos fáceis para o ridículo) os únicos realmente beneficiados por estas disputas de aniquilação mutua são aqueles que lutam por postos burocráticos, concessões do governo, vagas acadêmicas, contratos publicitários, clientes comerciais, ou partidos políticos nas épocas de vacas magras. Farejar a “incorreção política” lhes permite derrubar rivais e críticos e reforçar suas próprias posições como especialista reconhecido ou porta-voz de sua facção particular. Os diversos grupos oprimidos e que são suficientemente estúpidos para aceitar tais porta-vozes não percebem a mudança senão diante da sensação agridoce do ressentimento autojustificado e da ridícula terminologia oficial evocada pela neolingua de Orwell.(5)
Há uma distinção crucial, embora às vezes sutil, entre lutar contra os males sociais e alimentar-se deles. Ninguém aumenta seu poder porque é alentado a refastelar-se em seu próprio vitimismo. A autonomia individual não se desenvolve refugiando-se em alguma identidade grupal. Não se demonstra igualmente inteligência rechaçando o pensamento lógico. Não se promove o diálogo radical perseguindo pessoas que não se conformam com alguma ortodoxia política, e menos ainda lutando para reforçar legalmente tal ortodoxia.
Nem se faz historia reescrevendo-a. A verdade é que necessitamos nos libertar do respeito acrítico ao passado e discernir onde houve tangiversão. Mas temos que reconhecer que apesar de nossa desaprovação diante dos prejuízos e das injustiças do passado, é improvável que teríamos atuado melhor diante das mesmas condições. Aplicar os padrões atuais retroativamente (corrigir a cada momento os autores do passado que utilizaram antigas formas masculinas convencionais, ou querer censurar Huckleberry Finn porque Huck não se refere a Jim como uma “pessoa de cor”) só reforça a ignorância histórica que o espetáculo moderno logra estimular com tanto êxito.
Inconvenientes do moralismo e do extremismo simplista
Muitos destes absurdos derivam da falsa assunção de que ser radical implica viver conforme algum “princípio” moral — como se ninguém pudesse agir pacificamente sem ser um pacifista total, ou defender a abolição do capitalismo sem desfazer-se de todo seu dinheiro. A maioria das pessoas tem demasiado sentido comum para seguir realmente estes ideais simplistas, mas se sentem com freqüência vagamente culpados por não fazê-lo. Esta culpabilidade lhes paralisa e lhes faz mais susceptíveis à chantagem dos manipuladores esquerdistas (que nos dizem que se não temos a coragem de nos sacrificar, devemos apoiar acríticamente aqueles que o fazem). Ou tratam de reprimir sua culpa denegrindo a outros que parecem mais comprometidos: um trabalhador manual pode orgulhar-se de não vender-se mentalmente como um professor; que quiçá se sente superior a um publicitário; que pode por sua vez menosprezar a alguém que trabalha na industria de armamento
Converter problemas sociais em questões morais pessoais distrai a atenção de sua solução potencial. Tentar mudar as condições sociais mediante a caridade é como tentar elevar o nível do mar derramando caixas de água no oceano. Se alguém logra algum bem mediante ações altruístas, confiar nelas como estratégia geral é fútil porque sempre serão a exceção. É natural que a maior parte das pessoas considera antes seus próprios interesses aos interesses de seu próximo. Um dos méritos dos situacionistas foi haver superado as invocações esquerdistas da culpa e do auto-sacrificio destacando que a primeira causa para fazer uma revolução somos nos mesmos.
“Ir ao povo” para “servi-lo”, “organiza-lo”, “radicaliza-lo” conduz normalmente à manipulação e resulta com freqüência em apatia ou hostilidade. O exemplo das ações independentes dos outros é um meio de inspiração mais forte e saudável. Na medida em que as pessoas começam a atuar por si mesmas tornam-se mais dispostas a trocar experiências, colaborar em termos de igualdade e, caso necessário, solicitar assistência específica. E quando ganha sua própria liberdade é muito mais difícil voltar atrás. Um dos grafites de maio de 69 dizia: “Não estou a serviço do povo (muito menos de seus chamados líderes) — que o povo se vire sozinho”. Outro assinalava mais sucintamente: “Não me liberte — Eu cuido disso”.
Uma crítica total significa que tudo é questionável, não uma oposição a tudo. Os radicais esquecem isto com freqüência e caem em uma espiral de oposições mutuas mediante afirmações cada vez mais extremistas, supondo que qualquer compromisso eqüivale a vender-se, que todo prazer eqüivale a cumplicidade com o sistema. Realmente, estar “a favor” ou “contra” alguma posição política é bem fácil, e normalmente tão sem sentido, como estar a favor ou contra algum time de futebol. Aqueles que proclamam arrogantemente sua “total oposição” a todo compromisso, toda autoridade, toda organização, toda teoria, toda tecnologia, etc., normalmente não tem nenhuma perspectiva revolucionaria nenhuma concepção prática sobre como o sistema presente pode ser derrubado ou como poderia funcionar uma sociedade pós-revolucionária. Alguns inclusive tentam justificar esta carência declarando que uma simples revolução nunca poderia ser o bastante radical para satisfazer sua eterna rebeldia ontológica.
Esta ênfase do tudo ou nada podem impressionar temporariamente a alguns espectadores, mas seu efeito último é simplesmente aborrecer às pessoas. Cedo ou tarde as contradições e hipocrisias conduzem ao desencanto e à resignação. Ao projetar sobre o mundo suas próprias frustrações, os extremistas acabam concluindo que toda mudança radical é sem esperança e reprime a experiência total; ou quiçá se alienam em alguma posição reacionária igualmente néscia.
Imagine se todo radical tivesse que ser um Durruti. É melhor nos esquecermos dele e nos dedicarmos a questões mais realizáveis. Mas ser radical não significa ser o mais extremo. Em seu sentido original significa simplesmente ir à raiz. A razão da necessidade de ser radical para lutar pela abolição do capitalismo e do estado não significa que este seja o objetivo mais extremo que se possa imaginar, significa que chegou a ser desgraçadamente evidente que menos que isso não bastará.
Temos que dar-nos conta daquilo que é necessário e suficiente; buscar projetos que sejamos verdadeiramente capazes de fazer, que sejam factíveis dentro de uma probabilidade realista. O que passar disso é ar quente. Muitas das táticas radicais mais velhas e inclusive mais efetivas — debates, críticas, boicotes, greves, ocupações, conselhos operários — logram popularidade precisamente porque são simples, relativamente seguras, amplamente aplicáveis, e bastante abertas para conduzir a possibilidades mais amplas.
O extremismo simplista busca naturalmente seu contraste mais extremo. Se todos os problemas podem ser atribuídos a uma mera camarilha sinistra de “fascistas totais” tudo o mais parecerá comparativa e confortavelmente progressista. A realidade é que as formas atuais de dominação moderna são normalmente bem sutis, proliferam soltas e sem oposição.
Fixar a atenção nos reacionários só os reforça, os faz parecer mais poderosos e fascinantes. “Não importa que nossos oponentes nos ridicularizem ou nos insultem, ou mesmo nos apresentem como palhaços ou criminosos; o essencial é que falem de nós, que se preocupem conosco” (Hitler). Reich destacou que “instruir as pessoas para que odeiem a polícia só fortalece a autoridade da polícia e a investe de um poder místico aos olhos dos pobres e desvalidos. Os fortes são odiados mas também temidos, invejados e seguidos. Sentimentos de medo e inveja por parte dos ‘despossuidos’ explica uma parte do poder dos reacionários políticos. Um dos principais objetivos da luta racional pela liberdade é desarmar aos reacionários expondo o caráter ilusório de seu poder” (People in Trouble).
O principal problema que implica em comprometimento é mais prático do que moral: é difícil atacar algo quando nos mesmos estamos implicados nele. Criticamos com evasivas por medo que outros nos critiquem por sua vez. Se torna mais difícil conceber grandes idéias ou atuar com audácia. Como se observou com freqüência, muitos alemães consentiram a opressão nazi porque ela foi implementada de maneira bem gradual e esteve a principio dirigida principalmente contra minorias impopulares (judeus, ciganos, comunistas, homossexuais); até que chegou ao ponto de afetar a população como um todo, incapacitada de fazer qualquer coisa.
É fácil condenar retrospectivamente aqueles que capitularam diante do fascismo ou do estalinismo, mas é provável que a maioria de nós não faria diferente se estivesse no lugar deles. Em nossas ilusões, nos pintamos como um personagem dramático enfrentando uma opção bem definida diante de uma audiência que a valoriza, imaginamos que não temos problema em levar a cabo a decisão correta. Mas as situações que encaramos na realidade são normalmente mais complexas e obscuras. Nem sempre é fácil saber onde fixar limites.
Pois que os fixemos em algum lugar, deixemos de lado a preocupação pela culpa, vergonha e autojustificação, e tomemos a ofensiva.
Este espírito é bem ilustrado por aqueles trabalhadores italianos que foram à greve sem fazer reivindicações de nenhum tipo. Tais greves não apenas são mais interessantes que as negociações usuais dos sindicatos burocráticos, como podem inclusive ser mais efetivas: os chefes, sem saber o que fazer, acabam muitas vezes concedendo muito mais do que o grevista se atreveria reivindicar. Estes podem então decidir sobre seu segundo passo sem ter se comprometido com nada.
Uma reação defensiva contra este ou aquele sintoma social consegue na melhor das hipóteses tão somente alguma concessão temporária sobre o tema específico. A agitação agressiva que rechaça o limite exerce maior pressão. Diante de movimentos imprevisíveis mui extensos, como a contracultura dos anos sessenta ou a revolta de maio de 68 — movimentos que põem tudo em dúvida, gerando contestações autônomas em muitas frentes, ameaçando estender-se por toda a sociedade. Demasiado vastos para ser controlados por líderes cooptaveis — os dominadores se precipitam em limpar sua imagem, aprovam reformas, aumentam os salários, libertam prisioneiros, declaram anistias, iniciam processos de paz — qualquer coisa com a esperança de adiantar-se ao movimento e restabelecer seu controle. (A absoluta incontrolabilidade da contracultura americana, que se estendeu intensamente até o próprio exército, jogou provavelmente um grande papel, tanto que o movimento anti-guerra explicitou forçar o fim da guerra do Vietnã).
O lado que toma a iniciativa define os termos da luta. Na medida em que segue inovando, retêm também o elemento surpresa. “A audácia é na prática um poder criativo. Quando a audácia se defronta com a vacilação já tem uma vantagem significativa porque o próprio estado de vacilação implica uma perda de equilíbrio. Apenas quando a audácia se defronta com uma previsão cauta fica em desvantagem”. (Clausewitz, Sobre a guerra). Mas a previsão cauta é mui rara entre aqueles que controlam esta sociedade. A maior parte dos processos de mercantilização, espetacularização e hierarquização são cegos e automáticos: mercadores, os meios de comunicação e os líderes seguem simplesmente suas tendências naturais de obter dinheiro, captar audiência ou recrutar seguidores.
A sociedade do espetáculo é com freqüência vítima de suas próprias falsificações. Posto que cada nível da burocracia trata por si mesmo de proteger-se com estatísticas infladas, cada “fonte de informação” sobrepuja às outras com historias mais sensacionais, cada estado supera outro em competência, os departamentos governamentais e as companhias privadas põem em prática suas próprias operações de desinformação independentes (ver capítulos 16 e 30 sobre os Comentários à sociedade do espetáculo), até mesmo os dominadores que excepcionalmente vislumbram alguma lucidez dificilmente poderão averiguar o que é que realmente está ocorrendo. Como observa Debord em outro lugar do mesmo livro: um estado que reprimiu seu próprio conhecimento histórico já não mais pode conduzir-se estrategicamente.
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Vantagens e limites da não-violencia
“Toda a historia do progresso da liberdade humana mostra que qualquer concessão, seja ela qual for, nasce da luta. . . . Se não há luta não há avanço. Aqueles que professam a liberdade mas lamentam a agitação são homens que querem colher sem arar a terra. Que querem chuva sem trovões e relâmpagos. Que querem o oceano sem o imponente bramido de suas águas. A luta pode ser moral; pode ser física; pode ser moral e física ao mesmo tempo, mas deve ser uma luta. O poder não concede nada sem que se lhe peçam. Nunca o fez e nunca o fará”.
—Frederick Douglas
Qualquer pessoa com algum conhecimento de história tem a consciência de que as sociedades não mudam sem uma resistência tenaz e freqüentemente selvagem a quem está no poder. Se nossos ancestrais não houvessem recorrido a violentas revoltas, muitos daqueles que agora virtuosamente as deploram certamente seriam servos ou escravos.
O funcionamento rotineiro desta sociedade é muito mais violento do que qualquer reação que virtualmente venha a ocorrer contra ela. Imagine o escândalo que provocaria um movimento radical que executasse 20.000 oponentes; pois esta é a estimativa mínima do número de crianças que o sistema presente condena à morte por inanição a cada dia. Assim, as vacilações e compromissos permitem que esta violência continue em marcha indefinidamente, causando em última instancia milhares de vezes mais sofrimento que uma simples e decisiva revolução.
Afortunadamente, uma revolução moderna, genuinamente majoritária, teria relativamente pouca necessidade de violência exceto para neutralizar aqueles elementos da minoria dominante que tratam de manter violentamente seu próprio poder.
A violência pela violência é não apenas indesejável, além de gerar pânico (e deste modo, a manipulação) também promove a organização militarista (portanto, a hierarquia). Quanto à não-violencia ela implica em uma organização mais aberta e democrática; tende a promover a serenidade e a compaixão e rompe o ciclo miserável do ódio e da vingança.
Mas temos que evitar fazer da não-violência um fetiche. A velha réplica, “Como se pode trabalhar pela paz com métodos violentos?” não tem mais lógica do que dizer a um homem que está se afogando para que fique em terra firme e se afaste da água. Ao esforçar-se por resolver “mal entendidos” mediante o diálogo, os pacifistas esquecem que alguns problemas se baseiam em conflitos de interesses objetivos. Os pacifistas tendem a subestimar a malícia dos inimigos enquanto exageram sua própria culpabilidade, censurando inclusive seus próprios “sentimentos violentos”. A prática de “declarar-se” (contra a guerra, etc.), que pode parecer uma expressão de autonomia pessoal, na realidade reduz o ativista a um objeto passivo, “mais um pela paz”, que (como um soldado) põe seu corpo na frente de batalha ao mesmo tempo em que abdica da investigação ou da experimentação pessoal. Aquele que quiser descartar uma noção de guerra excitante e heróica deve ir além de uma noção de paz servil e miserável. Ao definir seu objetivo como sobrevivência, os ativistas pela paz tem pouco a dizer àqueles que estão fascinados pela aniquilação global precisamente porque adoeceram por uma vida quotidiana reduzida à mera sobrevivência, de maneira que vêem a guerra não mais como uma ameaça mas como uma libertação bem vinda diante de uma vida chata e atolada em uma ansiedade mesquinha.
Sentindo que seu purismo não resiste à prova da realidade, os pacifistas costumam manter uma ignorância intencional sobre as lutas sociais do passado e do presente. Embora com freqüência sejam capazes de intensos estudos e de uma autodisciplina estóica em sua prática espiritual pessoal. Aparentemente crêem que um conhecimento histórico e estratégico ao nível do Reader’s Digest será suficiente para sustentar suas iniciativas de “compromisso social”. É como alguém que espera evitar a queda de uma mala eliminando a lei da gravidade, acham mais simples imaginar uma luta moral infindável contra a “cobiça,” o “ódio,” a “ignorância”, a “intolerância,” do que ameaçar aquelas estruturas sociais que realmente reforçam esses males. Se eventualmente alguém insiste que se enfrente estas questões, se queixam de que a contestação radical é um terreno mui estressante. Como de fato o é, mas tal objeção se torna estranha quando vem daqueles cujas práticas espirituais afirmam tornar as pessoas capazes de enfrentar os problemas com objetividade e equanimidade.
Há um momento maravilhoso em A cabana do tio Tom: Uma certa família ajuda alguns escravos a escapar para o Canadá, quando aparece um homem do sul procurando por escravos fugidos. Alguém lhe aponta uma escopeta e lhe diz, “amigo, não precisamos de sua ajuda por aqui”. Penso que este é o tom correto: não escorregar no ódio, nem mesmo no desprezo, mas estar disposto a fazer o que for necessário diante de uma determinada situação.
As reações contra os opressores são compreensíveis, mas aqueles que chegam a se envolver demasiadamente com eles correm o risco de escravizar-se tanto mental como materialmente, amarrados a seus amos por “vínculos de ódio”. O ódio para com os amos é em parte uma projeção de ódio a si mesmo por todas as humilhações e compromissos que se tem aceito, que é o resultado da vaga consciência de que os chefes existem em última instancia apenas porque os governados os toleram. E mesmo que “a escória tenda a levantar-se como espuma”, a maioria das pessoas que ocupam posições de poder não atuam de modo mui diferente do que faria qualquer outro diante da mesma posição, com os mesmos interesses, tentações e novos medos.
Vigorosos revanches podem ensinar as forças inimigas a respeitar-te, mas tendem também a perpetuar antagonismos. A misericórdia às vezes atrai para teu lado os inimigos, mas pode também simplesmente lhes dar uma oportunidade para a recuperação e novamente te golpear. Nem sempre é fácil determinar qual destas duas políticas é melhor e em que circunstancias. As pessoas que tem suportado regimes particularmente viciados querem naturalmente ver castigados aqueles que os perpetraram; mas um excesso de vingança mostra a outros opressores presentes ou futuros que é melhor para eles lutar até a morte uma vez que não tem nada a perder.
Mas a maioria das pessoas, inclusive aqueles que foram vergonhosamente cúmplices do sistema, observam para onde sopra o vento. A melhor defesa contra a contra-revolução não é ruminar ofensas do passado ou possíveis traições futuras, mas aprofundar a insurgencia ao ponto de atrair todo mundo.
NOTAS
1. A difusão por parte da I.S. de um texto denunciando uma assembléia internacional de críticos de arte na Bélgica foi um belo exemplo disso: “Foram enviadas cópias a um grande número de críticos ou entregues pessoalmente. A outros foram feitos telefonemas onde se lia o texto completo ou em parte. Um grupo forçou sua entrada no Clube de Imprensa onde os críticos estavam sendo recebidos e espalharam os panfletos na audiência . . . Em resumo, foram dados todos os passos necessários para não dar nenhuma possibilidade aos críticos de ser inconscientes da existência do texto”.
2. “A ausência de um movimento revolucionário na Europa reduziu a esquerda a sua mínima expressão: uma massa de espectadores que desmaia de arrebatamento cada vez que os explorados das colônias se alçam em armas contra seus donos, e que não podem evitar de ver estes levantes como o epítome da revolução. . . . Ali onde há um conflito eles vêem sempre o Bem lutando contra o Mal, ‘revolução total’ versos ‘reação total’. . . .. A crítica revolucionária começa bem além do bem e do mal; está enraizada na história e opera sobre a totalidade do mundo existente. Em nenhum caso pode aplaudir a um estado beligerante ou apoiar à burocracia de um estado explorador em processo de formação. . . . É obviamente impossível por agora buscar uma solução revolucionaria à guerra do Vietnã. é necessário em primeiro lugar por fim à agressão americana para permitir que a luta social real no Vietnã se desenvolva de um modo natural, i.e. para capacitar aos trabalhadores e camponeses vietnamitas redescobrir seus inimigos dentro de seu próprio pais: a burocracia do norte e os estratos dominantes e proprietários do sul. Uma vez que os americanos se retirem, a burocracia estalinista tomará o controle do pais inteiro — esta conclusão é inevitável. . . . A questão é não dar apoio incondicional (e nem mesmo condicional) ao Vietcong, mas lutar consistente e intransigentemente contra o imperialismo americano”. (“Das guerras locais” I.S. #11, pp. 195-196, 203.)
3. “Em sua forma mistificada, a dialética chegou a ser uma moda na Alemanha porque parecia transfigurar e glorificar o estado de coisas existente. Em sua forma racional é um escândalo e uma abominação para a sociedade burguesa e seus professores doutrinários, porque compreendendo o estado de coisas existente reconhece simultaneamente a negação deste estado, sua dissolução inevitável.; porque contempla o movimento fluido de toda forma social historicamente desenvolvida, e portanto leva em conta sua transitoriedade tanto como sua existência momentânea; e por não deixar que nada se imponha sobre ela é, em sua essência crítica, revolucionária.” (Marx, El Capital.)
A cisão entre marxismo e anarquismo mutilou a ambos. Os anarquistas criticaram devidamente as tendências autoritárias e redutivamente economicistas no marxismo, mas geralmente o fizeram de uma maneira adialética, moralista, ahistórica, contrapondo vários dualismos absolutos (Liberdade versos Autoridade, Individualismo versos Coletivismo, Centralização versos Descentralização, etc.) e deixando a Marx e a outros quantos marxistas radicais um virtual monopólio sobre a análise dialética coerente — até que os situacionistas voltaram novamente a unir os aspectos libertários e dialéticos. Sobre os méritos e imperfeições do marxismo e do anarquismo ver A Sociedade do espetáculo §§ 78-94.
4. “O que emergiu nesta primavera em Zurich como manifestação contra o fechamento dos centros juvenis se estendeu por toda Suíça, alimentando o descontentamento de uma geração jovem ansiosa por romper com o que eles vêem como sociedade sufocante. ‘Não queremos um mundo onde a garantia de não morrer de fome se paga com a certeza de morrer de aborrecimento’, proclamam aos quatro ventos pelas vitrines de Lausanne”. (Christian Science Monitor, 28 de outubro de 1980.) O slogan é do Tratado de saber viver... de Vaneigem.
5. Para alguns exemplos hilariantes ver Henry Beard e Christopher Cerf’: The Official Politically Correct Dictionary and Handbook (Villard, 1992): é difícil discernir com freqüência se os termos politicamente corretos neste livro são satíricos, se foram propostos realmente a serio ou se foram inclusive adotados e reforçados oficialmente. O único antídoto para tal delírio são umas quantas sadias gargalhadas.
Fim do capítulo 2 de “A Alegria da Revolução” de Ken Knabb, tradução de Railton Sousa Guedes. Versão original: The Joy of Revolution.
No copyright.
Capítulo 1: Coisas da vida
Utopia ou precipício. “Comunismo” estalinista e “socialismo” reformista são
simples variantes do capitalismo. Democracia representativa versus democracia
delegativa. Irracionalidades do capitalismo. Revoltas modernas exemplares.
Algumas objeções comuns. O dominio crescente do espetáculo.
Capítulo 2: Excitação preliminar
Descobertas pessoais. Intervenções críticas. Teoria versus ideologia. Evitar
falsas opções e elucidar as verdadeiras. O estilo insurrecional. Cine radical.
Opressão versus jogo. O escândalo de Estrasburgo. A miséria da política
eleitoral. Reformas e instituições alternativas. Correção política, ou igualdade
na alienação. Inconvenientes do moralismo e o extremismo simplista. Vantagens da
audácia. Vantagens e limites da não violência.
Capítulo 3:
Momentos decisivos
Causas das diferenças sociais. Convulsões de pós-guerra. Efervescência de
situações radicais. Auto-organização popular. O FSM. Os situacionistas en maio
de 1968. O obrerismo está obsoleto, mas a posição dos trabalhadores continua
sendo o ponto central. Greves selvagens e ocupações. Greves de consumo. O que
podia ter acontecido em maio de 1968. Métodos de confusão e cooptação. O
terrorismo reforça o estado. O momento decisivo. Internacionalismo.
Capítulo 4: Renascimento
Os utópicos não prevêem a diversidade
pós-revolucionária. Descentralização e coordenação. Salvaguardas contra os
abusos. Consenso e dominio da maioria. Eliminar as raízes da guerra e do crime.
Abolição do dinheiro. Absurdo da maior parte do trabalho presente. Transformar o
trabalho em jogo. Objeções tecnofóbicas. Temas ecológicos. O florescimento de
comunidades livres. Problemas mais interessantes.
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